Para cientista político, a soberania nacional não existe mais

O livro “Democracia e globalização”, de Josep Colomer, é uma das principais reflexões teóricas sobre os efeitos globais do “fora todos”, fenômeno de renovação política que também aconteceu na Argentina. O cientista político aponta que a governança deve mudar, passando a abarcar outras dimensões do humano, como a psicológica

Para o cientista político, Josep Colomer, a soberania nacional não existe mais
Cientista político, Josep Colomer (Crédito: Divulgação)

Membro da Academia Europeia e membro vitalício da Associação Americana de Ciências Políticas, o cientista político, Josep Colomer, afirma que vivemos um novo paradigma.

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Aquela velha frase de Winston Churchill que diz que “a democracia é o menos ruim de todos os sistemas conhecidos” ainda é válida?

Churchill disse que a democracia é o sistema menos ruim, mas é perfeitamente possível piorá-lo, como vimos nos últimos tempos.

Seu livro “Democracia e Globalização” tem como subtítulo “Raiva, medo e esperança”. Como esses três conceitos, geralmente psicológicos ou éticos, se tornam políticos?

A raiva, o medo e a esperança são emoções humanas que a psicologia atual estuda de forma inovadora, mas também são emoções e paixões de quem participa da política. Há mais emoções na vida, é claro, mas essas são muito úteis para entender o comportamento político recente.

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No livro você diz que “a raiva é uma emoção política favorável à mudança, da qual os partidos e candidatos da oposição podem se beneficiar. Como em algumas crises recentes, os enraivecidos tendem a gritar ‘fora todos!’ Na Argentina, essas palavras de ordem (‘que se vayan todos’) deram início a uma mudança na formalidade política e ao surgimento dos atuais líderes políticos: a família Kirchner e Mauricio Macri”. No entanto, não houve transformação estrutural no país. A raiva basta?

Claro que não basta. Quando os líderes políticos de oposição que agitavam a raiva se tornam governantes, eles tendem a mudar de tática e passam a apelar ao medo. O caso mais recente foi Donald Trump. A sua campanha eleitoral durou mais de um ano, convocando a rebelião contra o establishment, contra Washington. Quando ele chegou ao governo, ele começou a dizer o contrário. Ele falou da oposição, dos imigrantes, tentando gerar passividade. O governo tenta gerar passividade por meio do medo. Assim, todas as mudanças que pareciam ser anunciadas pela oposição enraivecida tendem a ser frustradas.

Existe alguma ligação entre a raiva como você a define, o conceito político e o que estamos vendo em todos os países do mundo, em maior ou menor grau, da polarização que na Argentina chamamos de “grieta” (brecha)?

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A raiva é uma emoção opositora. Ela se expressa contra os governantes e pelo desejo de mudança. Mas se os governantes não querem fazer mudanças e bloqueiam o processo, isso gera polarização e conflito entre os dois povos, principalmente se houver apenas dois partidos, como nos Estados Unidos. Um fica com a presidência e o outro com o Congresso. Onde há apenas duas alternativas, que é a definição de polarização.

“A democracia não é um luxo apenas para os países ricos; ou para os protestantes ou para os brancos. Tempos atrás, dizia-se que o catolicismo era incompatível com a democracia. Ficou demonstrado que não era o caso”

Você definiu políticas públicas viáveis e eficazes como receita. Como você as explicaria?

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Do ponto de vista técnico, as políticas públicas devem ser eficientes. Devem ser usados recursos adequados para os fins pretendidos. O segundo ponto é subjetivo: que as pessoas concordem, satisfeitas. Isso é algo que nunca terminamos sabendo ao certo. Mas são as duas coisas. Elas têm que ser tecnicamente eficientes, mas também satisfatórias para as pessoas em geral.

Existe um componente irracional nas pessoas que as leva a tomar decisões que nem sempre trazem benefícios?

A psicologia tradicional baseava-se em experimentos e hipóteses. Mas agora, pela primeira vez nos últimos vinte anos, podemos ver o cérebro. Podemos ver como ele reage e age e é ativado ou desativado de acordo com diferentes estímulos externos. Começamos a saber como funciona. Devemos ter isso bem presente. As pessoas têm diferentes propensões ao risco, como costuma ser dito em economia. Mas agora vemos isso diretamente no cérebro e nos genes. Existem pessoas mais propensas ou adversas a tomar decisões arriscadas. Alguns pensam mais no longo prazo; outros no curto. E isso não tem muito a ver com ser rico, pobre, homem ou mulher. Está nos genes e nos cérebros. Essas categorias devem ser incorporadas. Também é importante para entender o comportamento político.

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A democracia é, em última instância, um sistema ético, ainda mais do que um sistema político?

É a tese do livro, ultimamente. A democracia é um critério ético de governo por consentimento dos governados. Como tal, é compatível com diferentes fórmulas políticas e institucionais. Realizamos procedimentos democráticos num referendo, mas também numas eleições, numa assembleia de bairro, num conselho estudantil, no júri de um prêmio literário. As decisões são tomadas por consentimento, mas existem maneiras muito diferentes pelas quais as alternativas são selecionadas. É o mesmo a nível local, nacional, continental ou global. Existem fórmulas para uma participação mais direta, eleições com partidos políticos, governos de especialistas. Sempre que eles forem responsáveis por sua gestão e haja transparência e seja possível substituir governantes insatisfatórios por métodos pacíficos. É um conceito amplo de democracia, por consentimento.

Nesta mesma série de reportagens, Carlos Bianco, Chefe do Gabinete da província de Buenos Aires, disse estar otimista com a vitória nas eleições de novembro do partido governante porque as pessoas se sentirão cuidadas por estarem vacinadas e por terem um pouco mais de dinheiro no bolso. A vacinação pode ser uma ferramenta eleitoralmente eficaz?

Ainda é cedo para saber isso em matéria de vacinação. Mas se estarem cuidados significa terem um pouco mais de dinheiro no bolso, é necessária uma reativação econômica. É o que às vezes é considerado necessário. No livro, vemos uma correlação entre crescimento econômico e satisfação com a democracia. “Estar cuidado” significa ambos: saúde e economia.

“Saber como o cérebro funciona ajuda a entender o comportamento político.”

A China, um sistema que para os ocidentais não é democrático, estaria, no entanto, validado pela melhoria econômica da população e, para eles, talvez isso seja democracia.

Não. A melhoria econômica favorece o governo existente, seja ele democrático ou ditatorial, como na China. Se as pessoas estão satisfeitas com o funcionamento das coisas, podem aceitar que esse governo continue. O problema é quando isso para de funcionar. Estive na China e o crescimento das grandes cidades, Xangai e Pequim, é espetacular, mas o país é enorme. Há muitas outras áreas. Um dos grandes problemas é a emigração massiva do campo para as cidades, que é muito difícil de assimilar. Em algum ponto, o crescimento diminuirá, como acontece em todos os lugares. A diferença é que uma ditadura não tem recursos para substituir o governo quando falha em seu propósito de promover a prosperidade econômica. Em um país democrático, os governos perdem eleições. Nos últimos anos, eles perderam mais do que nunca. Os partidos tradicionais, incluindo os partidos no governo, em muitos países praticamente desapareceram e outros novos surgiram. Mas o mecanismo ainda está em vigor. As eleições são convocadas e o governo pode ser mudado, mas em uma ditadura isso não pode ser feito. O regime deve mudar e é isso que o torna vulnerável no médio prazo.

Durante a pandemia, exceto na Bélgica e algumas outras exceções, todos os governismos perderam as eleições. As pessoas associam o mau momento com quem governa, à margem da redução real de danos pela gestão?

A pandemia, com a dor, as mortes, a perda de empregos, pode ter algumas consequências positivas. Uma é que todos os cidadãos do mundo estão cientes de que vivemos em um mundo globalizado. Sabemos o que acontece na China, como são as diferentes ondas, entre outras coisas. Temos muitas informações sobre o mundo, estamos muito atentos ao que acontece em outros países. E percebemos que as soluções para problemas desse tipo devem ser globais. A Organização Mundial da Saúde deveria ter sido mais forte para ter mais envolvimento. Talvez isso aconteça no futuro. Com as vacinas, vemos que não são uma solução local ou nacional, são internacionais e globais. A pandemia pode aumentar a conscientização sobre a globalização. Para mal, para mazelas como a pandemia; mas também para melhor, para encontrar soluções possíveis.

O senhor disse que “dizem que governos populistas geram economias com doenças terminais, mas assintomáticas, ao contrário dos governos liberais, que vão no caminho certo, mas à custa de muito sofrimento no presente”. Há alguma maneira de administrar para que não haja choque?

As doenças populistas deixam de ser assintomáticas quando os populistas entram no governo. Na maioria dos países, os resultados dos governos populistas nos últimos anos foram decepcionantes em comparação com as expectativas que promoveram. Donald Trump, outros casos na Europa e em vários países da América Latina. Você só pode ser “outsider” uma vez. Quando você chega ao governo, você já vira “establishment”. Precisa fornecer resultados positivos. Muitos perderam na eleição seguinte. São doenças terminais nesse aspecto também.

Há uma tentativa de se posicionar no poder afirmando que na realidade o poder pertence a outros, à mídia, aos donos do dinheiro, às finanças internacionais, à globalização? Isso foi que Trump disse e o que dizem os governos latino-americanos.

Na globalização, observa-se que os estados nacionais tradicionais não controlam mais muitas questões. Não controlam as fronteiras ou a comunicação. Antes, um governo nacional podia construir e controlar os correios, o telefone ou mesmo o rádio e a televisão. Agora, com a internet, não há limites. O comércio, os investimentos, ultrapassam fronteiras e são mal regulados. Deveriam ser um pouco mais regulados. As migrações costumavam ser do campo para a cidade dentro de um país ou um pouco mais e agora são internacionais. Questões como terrorismo ou mudança climática são globais. A própria pandemia foi uma praga local que se tornou uma epidemia e depois uma pandemia. São questões que fogem ao controle ao qual os governos tradicionais estavam acostumados e é o que gera aquela insatisfação e confusão nos governantes, que não sabem o que fazer. Precisamos mudar a agenda e que algumas questões que ainda dependem legalmente dos governos nacionais passem para um nível mais internacional.

Na Argentina cunhou-se o neologismo “infectadura”: o que os especialistas diziam virava uma ditadura porque diziam o que devia ser feito e todos tinham que aceitar como se fosse uma verdade revelada. A questão é: os especialistas e os governos de especialistas não vão de alguma forma contra a ideia dos sábios e de sabedoria, que é algo que combina muitas especialidades e não apenas uma?

Governos de especialistas não eleitos sempre existiram na democracia. Os juízes quase nunca são eleitos: são independentes, se escolhem entre si, são especialistas na matéria. O mesmo é o Banco Central de cada país. Existem muitas agências especializadas em governos que não dependem do resultado das eleições e continuam a fazer o seu trabalho. Isso sempre existiu em nível nacional. Estudei o governo de especialistas em nível internacional. Estive no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional, e fiquei realmente impressionado, favoravelmente. O Banco Mundial não é o mesmo de trinta anos atrás. São pessoas com grande competência técnica, com muita transparência. As atas de todas as reuniões são imediatamente acessíveis, incluindo as notas manuscritas dos membros do conselho e há análises muito sérias dos resultados, críticas e autocríticas. Algo que os governos nacionais não costumam fazer. Há a retificação, se necessário, de uma mudança na estratégia de políticas públicas, caso não funcionem bem. Vinte ou trinta anos atrás, falava-se do Consenso de Washington e hoje não. Vivemos em uma política de ativação econômica. Funciona melhor do que muitos governos nacionais que geralmente não fazem um balanço dos resultados. Quando novas eleições são convocadas, novas promessas são feitas, de outras coisas, mudam-se os candidatos, mas raramente se olha para trás. Há muito a aprender com governos de especialistas. Do ponto de vista da representatividade, são menos representativos porque não são votados. É uma representação indireta, porque os governos enviam seus representantes. Mas metade dos países do mundo não são democráticos.

“A polarização nos Estados Unidos se acelerou em grande parte após a queda do Muro de Berlim.”

É factível dar um passo adiante e ir em direção a um governo de sábios mais que de especialistas?

Um homem sábio seria um político que entende as prioridades. É o grande assunto. A questão consiste em escolher os temas prioritários de cada momento. Esta não é uma decisão técnica, mas coletiva. Também depende do que em inglês é chamado de “mood”, o humor social. É imprevisível. Em uma pandemia, as questões devem ser abordadas, mesmo que não tenham sido previstas, mas em outros casos há uma certa margem de escolha. Escolher as prioridades. Não devemos fingir que todos os presidentes, secretários, ministros, sabem tudo e são multivalentes. Você tem que delegar para quem realmente sabe de cada assunto.

As redes sociais ou a web como um todo são uma ferramenta para melhorar a institucionalidade com elementos de democracia direta?

Não. Eu sou bastante cético. No livro, citamos alguns textos, de mais de vinte anos atrás, de extremo otimismo sobre uma democracia eletrônica. E não se verificou. Não há dúvida de que a internet, as redes, aumentaram a informação, a participação, a transparência, a pesquisa e, claro, o debate público. Mas também foi uma fonte de notícias falsas, dessa mistura de especialistas e demagogos que interferem. A privacidade foi quebrada, e isso é algo muito sério. Na política, gerou-se uma visão imediatista de curtíssimo prazo, com respostas emocionais, instantâneas. Em alguns casos foi para melhor, mas em outros para pior. Globalmente, vemos uma situação muito mais complexa. Há coisas boas e coisas ruins.

No seu livro, você diz que há 93 países no mundo que têm democracia, 45 deles podem ser considerados relativamente pobres e 48 relativamente ricos. A democracia não é um sistema econômico e político, mas cultural e social?

—Esse 93 é um número que pode ser um pouco menor ou maior, dependendo da sua definição. A democracia é uma forma política e é compatível com qualquer contexto cultural e social. A democracia não é um luxo apenas para os países ricos; ou para os protestantes ou para os brancos. Tempos atrás, dizia-se que o catolicismo era incompatível com a democracia. Ficou demonstrado que não era o caso. O problema com a democracia em todos os lugares é, uma vez estabelecida, como ela funciona e que resultados ela produz. Muitas vezes está sujeita a resultados imprevisíveis. O habitante médio dos quase 8 bilhões que temos hoje tem uma certa renda per capita. Metade dos países democráticos estão acima dessa média e metade, ou quase a metade, abaixo. A Índia conta muito nesta estatística porque está abaixo dela. Mas é um dado forte para mostrar que a democracia pode ser estabelecida em qualquer lugar.

Nos países da América do Sul, a pandemia causou danos maiores. Eles demorarão, em média, o dobro dos países desenvolvidos para recuperar o produto bruto per capita que tinham antes do coronavírus. A democracia é um remédio social para superar a situação?

A democracia da América Latina sempre teve muitos problemas. Morei vários anos no México e visitei mais da metade dos países da América Latina. Estive três vezes na Argentina. A herança colonial espanhola gerou quatro vice-reinados, fragmentados em 15 países e depois em 20, de diferentes tamanhos. Portanto, comparar Argentina ou Colômbia com Honduras não faz muito sentido. Muitos dos processos de independência, ao contrário da Índia, por exemplo, foram liderados pelos militares, caudilhos de cada lugar. O exército foi um importante ator político na maioria dos países latino-americanos, o que não é normal em outros lugares. Soma-se a isso o presidencialismo. Eleger um presidente executivo diferente do Congresso, como nos Estados Unidos, também gera conflito e polarização. É claro que há questões econômicas e sociais, de estrutura básica, que tornam complexo governar um país relativamente pobre. Mas todos esses elementos institucionais não favorecem a boa governança. Eu apoiaria muito que houvesse mais alianças internacionais. O Mercosul foi um começo, mas pode melhorar se o processo for intensificado.

A política deveria ser regionalizada?

A alternativa é criar níveis múltiplos de governo. A soberania nacional não existe mais. Os governos nacionais estavam acostumados a controlar tudo: comunicações, comércio, a população, seus movimentos. Já não é assim. O que precisa ser reestruturado é que a cada nível de governo devem corresponder diferentes assuntos, segunda a sua escala. O nível local é muito importante para algumas coisas, para trânsito, lixo, parques e jardins, escolas primárias. Permite uma participação mais direta. Esses governos continuarão a fazer muitas coisas de infraestrutura e serviços básicos. Mas há outras questões que devem ser delegadas, transferidas para organizações internacionais e globais. Nenhum desses níveis é soberano. Nenhum domina os outros. Cada nível tem competências próprias, de acordo com sua escala de eficiência. A ideia de soberania nacional de 200 anos atrás é obsoleta. Não funciona. Cada nível de governo deve se dedicar ao seu trabalho.

Globalização e neoliberalismo são funcionais e egossintônicos ou apenas coincidem no tempo?

Me parece que o neoliberalismo era um rótulo. É um pouco antiquado. Refere-se a políticas que já não são aceitáveis. É necessário governar a globalização. Isso é serviço de governança. Mais governança, no nível certo dos problemas atuais. Em algumas coisas, os mercados são muito amplos e devem continuar a sê-lo. Mas eles devem ser regulamentados. Houve uma mudança enorme, celebrável, que é o Grupo dos Sete. As sete democracias mais desenvolvidas do mundo, com a reentrada dos Estados Unidos, aprovaram ativamente a taxação de grandes empresas multinacionais.

Mesmo se estiverem na Irlanda, deverão pagar 15%.

Depois do G7, vem o G20, que inclui a Argentina e a Espanha, por exemplo, que vão ter que aceitar essa decisão e aplicá-la. É uma grande mudança. A globalização pode ser governada de uma maneira melhor. E isso demonstra um caminho.

No futuro haverá uma transferência de soberania para cima?

Para cima e às vezes para baixo, mas sim. Principalmente para cima, sem deixar de ter governos nacionais. Em algumas coisas eles são muito importantes e têm muito apoio social, mas é a tendência. O mundo está cada vez mais globalizado. As instituições políticas não são adequadas para este mundo. Elas correspondem a um mundo que não existe mais. Se queremos que as coisas funcionem melhor, devemos seguir nessa direção.

O aumento da velocidade força os sistemas políticos a se adaptarem?

A velocidade veio com a internet, com a comunicação digital. A mesma coisa que estamos fazendo agora, há vinte ou trinta anos, era inconcebível. Fui várias vezes à Argentina para dar palestras. Não tínhamos pensado na possibilidade de dar a conferência online. A comunicação é muito mais rápida. Fazemos coisas que não podíamos imaginar antes. Isso acelera as mudanças tecnológicas e econômicas que começavam, agora é mais difícil governar porque são necessárias respostas mais imediatas.

A escalada do conflito com a China favoreceria um renascimento do espírito democrático?

Os mais velhos um pouco, mas os mais jovens não têm ideia de que houve uma Guerra Fria. Havia muito medo. O pânico de que nos atacassem, uma guerra nuclear com a União Soviética ou uma invasão russa, ou um golpe de Estado comunista nos Estados Unidos ou em alguns países europeus. A Alemanha estava dividida e isso contribuiu para o medo. Esse medo fez com que durante um período de quase quarenta anos houvesse uma certa paz social interna. Falava-se pouco de assuntos controversos. O grande assunto, especialmente nos Estados Unidos, era o inimigo externo. Apenas a economia e a política externa estavam na agenda pública. Quando a União Soviética foi dissolvida, a Guerra Fria acabou, e as pessoas perderam o medo. Começaram a pedir coisas novas e a protestar. Questões que antes não eram consideradas políticas apareceram na ordem do dia. Chegamos assim à instabilidade que temos há anos. Há crise econômica, mas também as pessoas começaram a reclamar de questões que antes eram vetadas.

Os Estados Unidos começam a reconhecer que existem OVNIs e uma vida inteligente perto de nós, de alguma forma está preparando as expectativas da humanidade para outra etapa. Como você vê isso?

Estávamos falando sobre a China como um inimigo próximo em potencial. A coisa dos OVNIs ainda não é uma questão politicamente viável. A pesquisa sobre o assunto é antiga. Nos Estados Unidos, houve a tentação, depois da Guerra Fria, de encontrar um inimigo externo. Quando isso desapareceu, mais conflitos e protestos e instabilidade política apareceram. Isso já aconteceu um pouco nos anos 1960 e início dos 1970, quando John Kennedy e Nikita Khrushchev concordaram com a coexistência pacífica. Não é por acaso que surgiram imediatamente os movimentos pelos direitos civis raciais ou dos estudantes contra a Guerra do Vietnã, assim como o feminismo. É uma tentação procurar um inimigo externo para concentrar energias e reduzir o peso da agenda interna. A proposição implícita no livro é que, se houver muitos assuntos a serem discutidos, os descentralizemos para que nenhum governo fique sobrecarregado. E não afastar certos assuntos importantes da agenda. É a pergunta que tenho sobre Biden agora: não sei para onde ele está indo.

Você escreveu: “Um rei não eleito não tem legitimidade democrática de origem, mas deve obter legitimidade no exercício. Juan Carlos conseguiu fazer isso por muito tempo e por isso houve mais juancarlistas que monarquistas, e Felipe VI começou num bom caminho”. O que seria um bom caminho?

Todas as monarquias democráticas existentes, algumas dezenas no mundo, são baseadas nisso. Dos dez países mais bem governados do mundo, de acordo com muitas pesquisas e avaliações, incluindo do Banco Mundial, sete são monarquias. No início, os países eram monarquias ou colônias. Na maioria, isso falhou e viraram repúblicas ou ditaduras. As que sobreviveram é porque funcionavam bem, porque havia prosperidade e paz. Em alguns casos, o rei era muito ativo. Na Segunda Guerra Mundial, em alguns países europeus, como a Noruega ou a Holanda, o rei teve um papel ativo contra os nazistas, a favor da resistência. As monarquias sobreviveram porque havia paz suficiente de longo prazo. A Espanha é uma exceção, um caso raro. É o país onde a monarquia foi restaurada após o mais longo período sem ela. A monarquia espanhola foi destronada várias vezes, mas a última em 1931, e voltou na década de 70. Depois de tanto tempo é quase impossível. É por isso que é um caso especial. Mas o rei Felipe VI, segundo as pesquisas mais sérias na Espanha, tem 70% de aceitação popular. Não há nenhum governo, nenhum partido, que tenha metade desse apoio. Está indo bem até agora.

“Hoje, é necessário governar a globalização.”

Nós das Américas, acostumados com sistemas republicanos, achamos que é uma instituição anacrônica. Como você a explicaria para nós que nascemos e nos desenvolvemos em países onde nunca houve um rei?

As monarquias democráticas são 10 ou 12, são parlamentares. O rei não é o chefe do Executivo. O chefe do Executivo é um primeiro-ministro. Há uma vantagem adicional: evita o presidencialismo. O chefe de um governo parlamentar tem maioria no Parlamento, por definição. É diferente do que na América Latina ou nos Estados Unidos, nos quais o chefe do Executivo muitas vezes não tem maioria no Congresso e é uma fonte de conflito. Isso é evitado colocando-se um chefe de Estado cerimonial mais ou menos simbólico.

O papel do rei é ser um presidente não executivo?

Ninguém sabe o nome do presidente da Alemanha (N. da R.: é Frank-Walter Steinmeier). Existe uma figura cerimonial que não detém o Poder Executivo. O rei é um pouco o mesmo. É um símbolo mais colorido do que o presidente da Alemanha, mas com as mesmas funções. Ele assina as leis aprovadas pelo Parlamento, convoca eleições que são solicitadas pelo Primeiro-Ministro. Às vezes representa o país. É diferente de uma república presidencialista. Se houvesse um referendo na Espanha, eu ficaria preocupado com o tipo de república que desejaríamos em troca. Não acho que um esquema como o da França seria melhor. Se fosse um parlamentarismo como o alemão, perfeito.

Por que funcionam nos Estados Unidos e na França, mas não em outros países?

Em geral, é uma fonte de conflito. Funcionam só quando o partido do presidente tem maioria no Congresso. Nesse caos é como um regime parlamentar. Mas em muitos períodos, nos Estados Unidos quase a metade do tempo há vários anos, o partido do presidente não tem maioria no Congresso. É uma batalha permanente. Vivo isso em Washington todos os dias. Na época de Trump, era um horror porque era um conflito diário, cotidiano, entre um presidente e a maioria do Congresso. Não é bom para governança. Se houver capacidade de formar grandes maiorias que permitam a colaboração institucional, tudo bem. Mas não é garantido e, em muitos casos, é o contrário.

“A democracia não é um luxo apenas para os países ricos.”

O sistema presidencialista é ineficiente?

É mais propenso a conflitos institucionais.

Os Estados Unidos estão enfrentando um problema, então?

Um problema muito sério de tomada de decisões internas. Não é um bom regime. Os Estados Unidos são excelentes em muitas coisas, mas não em seu sistema político. É conflitivo. Com dois partidos, é ainda mais grave. Se houver vários partidos, é possível formar uma coalizão e negociar entre a presidência e uma maioria multipartidária no Congresso. Mas se houver apenas dois partidos, na metade do tempo haverá um partido na Casa Branca e outro no Congresso. Portanto, há uma batalha constante, com crescente polarização entre as duas partes. Na Guerra Fria isso não aconteceu porque havia medo. Os republicanos colaboravam com os democratas, e estes estavam divididos entre o norte e o sul. Às vezes, eles iam mais com os republicanos do que com seus companheiros de partido. Havia muito mais cooperação, não havia disciplina partidária. Havia mais transversalidade. Mas há muitos anos os partidos são disciplinados. Há uma enorme e crescente polarização. O regime político dos Estados Unidos é um modelo ruim.

“Nos últimos anos, os governismos perderam eleições como nunca antes.”

Dada a combinação do regime presidencialista e a falta de um inimigo externo, a polarização seria filha da queda do Muro de Berlim?

Em grande parte sim. Foi em grande parte acelerada por causa disso. Foi muito visível na era Clinton. A maioria republicana no Congresso, que não existia havia muitos anos, começou a atacar tudo. Qualquer coisa que o Clinton falasse ou fizesse, envolvia falar de impeachment. O primeiro impeachment foi dos republicanos contra o presidente democrata. Foi o início dessa desordem. Claro que existem outros fatores, mas a política externa é muito importante para os Estados Unidos, não há dúvida disso. Isso é importante para o mundo, mas também é importante para a política interna.

Na sociologia, um dos axiomas básicos é que, diante do perigo externo, os grupos tendem à coesão. É a regra básica do governo?

Essa é uma regra ilustrativa. Sim, coesão significa que os membros dos diferentes grupos cooperam. A sociedade é mais coesa. Acontece em todas as escalas: pessoal, familiar, local, nas cidades. Mas em um regime político de um grande país, fica mais claro. A política mundial mudou várias vezes nos últimos cem anos. Quando há mais conflito externo ou mais ameaças e as pessoas acreditam nelas, há mais coesão interna, sem dúvida.

“As expectativas são muito importantes na democracia.”

Há uma palavra que tanto os economistas como os cientistas políticos usam: “expectativas”. Podem ser medidas cientificamente? Falar sobre expectativas insatisfeitas implica ampliar o arcabouço epistemológico da ciência política e da economia e passar para novas categorias?

A ciência política, nos últimos setenta anos, foi, primeiro, muito influenciada pela sociologia, e, depois, pela economia. Essa foi a minha época, de certa forma. Mais recentemente, a psicologia está fornecendo elementos muito interessantes que devem ser incorporados. O conceito de expectativa é um desses elementos, é muito importante. As pessoas reagem aos resultados do governo em grande parte com base nas expectativas prévias. Vale a pena analisar o que aconteceu nos últimos 10 ou 12 anos em países mais desenvolvidos onde havia grandes expectativas, por exemplo na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos, de que nossos filhos viveriam melhor do que nós, nossos netos melhor do que nossos filhos. E isso não se verificou. Ao contrário, houve uma grande recessão. Inclusive, muitos problemas aumentaram com a pandemia. É o que gera frustração e insatisfação, pois as expectativas eram muito altas.

Mas há outros casos dos quais se fala menos. Principalmente na Índia, a maior democracia do mundo. Estudar a democracia no mundo e não incluir a Índia seria como estudar o capitalismo e não incluir os Estados Unidos. Ou a Indonésia, a terceira democracia em termos de população, mais recente, ainda insegura, mas muito interessante. O que esses países e alguns outros têm em comum é que as pessoas não tinham grandes expectativas. A Índia teve, após a independência, cerca de quarenta anos com crescimento econômico zero. Por outro lado, nos últimos trinta anos cresceu 7% ou 8% ao ano. As expectativas eram tão baixas que, como o país funciona muito melhor do que o esperado, as pessoas estão muito satisfeitas com a democracia. Quando você pergunta quão satisfeitas as pessoas estão com o funcionamento da democracia no sul da Europa, incluindo Espanha, Itália e Grécia, e em muitos países da América do Sul, a satisfação é de 30% ou 40%. Na Índia, é de 85%, justamente porque as expectativas são muito baixas. Isso não significa que nesses países se viva melhor. Os problemas são enormes, como se viu com a pandemia, embora estejam reagindo melhor do que o esperado. Mas, é claro, na Índia ainda se vive muito mal. Mas o problema da democracia não é esse. O problema é o que se espera que os governos façam e quais são os resultados. Nesse caso, muito melhores do que o esperado. As expectativas são muito importantes na política.

“A integração econômica da América do Sul nos permitiria abordar questões comuns que fogem do controle dos governos.”

Que leitura faz sobre as convulsões que ocorreram na América Latina em países que supostamente haviam tido sucesso econômico, como a Colômbia, como o Peru, como o Chile?

Eu estive presente na formulação da lei eleitoral na Colômbia. Um pequeno grupo de especialistas dos Estados Unidos mudamos a lei eleitoral. Como eu era quem melhor falava espanhol, fui várias vezes e conversei com todos os parlamentares e partidos. O funcionamento institucional foi melhorado. Mas o problema eram as guerrilhas. Essa era a grande limitação. O Chile foi uma surpresa. Parecia que funcionava melhor do que vemos agora. Vamos ver o que acontece com a nova Constituição. É bastante incerto. O Peru é um caso extremo. Como sistema, apoio o segundo turno. É menos ruim. É melhor eleger um presidente desta forma do que em um único turno, como no México. Em um primeiro turno, a secas, qualquer um pode vencer. Por outro lado, com um segundo turno sabe-se que o pior não vencerá. Pedro Castillo era agora o segundo “menos pior”. A diferença com a pior é muito pequena. E também é um caso extremo, porque dos sete presidentes desde a restauração da democracia na década de 1980, cinco eleitos e dois interinos, todos estão presos ou em exílio voluntário, escondidos ou em julgamento, e ainda tem o suicídio de Alan Garcia. É único no mundo. Ou seja, não existe outro país assim. Sete presidentes processados ou acusados. Este é um caso extremo, mas tem em comum características institucionais que, creio, podem ser melhoradas.

Pode acontecer que as expectativas não sejam atendidas, que a distribuição dos benefícios não aconteça, mesmo que sejam países que funcionam em termos de eficácia macroeconômica?

Quanto mais melhora a situação, mais crescem as expectativas. Isso também pode ser difícil de administrar. Se continuar assim na Índia, acontecerá isso mesmo. As expectativas de crescimento indefinido aumentarão e, no dia em que deixar de crescer, provocará a mesma reação que em outros países. Chile, Colômbia são países que estavam se saindo melhor economicamente, e isso gera expectativas. Quando elas não são alcançadas, a reação é muito mais forte do que em outros países. A integração econômica da América do Sul é uma grande área para melhorar e abordar em conjunto questões que fogem do controle dos governos.

*Por Jorge Fontevecchia – Co-fundador da Editorial Perfil; CEO da Perfil Network.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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