Opinião

Putin não é a doença, ele é um sintoma

*Por Giovanni Catelli – Escritor italiano, autor de Camus deve morrer e O vício do vazio. Seu último livro é Versos de amor cego.

Putin não é a doença, ele é um sintoma
Vladimir Putin (Crédito: Adam Berry/ Getty Images)

Recentemente, um artigo muito importante do escritor russo Mijhail Shishkin apareceu no The Guardian, que tenta explicar, e consegue, a situação na Rússia, o país agressor da Ucrânia. Na frase final aparece uma síntese brilhante: o ditador não é uma doença, é um sintoma. Portanto, o problema não é um ditador assassino que decide uma guerra sangrenta: é algo muito maior e mais estrutural. O problema está no país que gerou o monstro e continua a produzir cidadãos que não querem ver a realidade, seguem a insistente propaganda televisiva como autômatos e colocam adesivos no carro ou na janela com a letra Z, o símbolo sinistro da a invasão, pintada em todas as máquinas mortíferas enviadas às ruas do país irmão.

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O escritor destaca o fato de os russos estarem isolados do mundo moderno: ainda se identificam com a tribo, não consideram o indivíduo como prioridade sobre a consciência coletiva; consequentemente, “essa enorme lacuna na civilização nunca foi preenchida. Este é o drama do meu país: um pequeno número de meus compatriotas está preparado para viver em uma sociedade democrática, mas a maioria continua se curvando ao poder e aceitando esse estilo de vida.”

Inúmeros fatores poderiam ser lembrados que significam e demonstram a distância estrutural ideal da Rússia em relação à cultura ocidental. Acima de tudo, a falta, na história russa, de um pensamento essencial para o desenvolvimento do Ocidente, como o Iluminismo, pelo fato de a Rússia, ao longo de sua história, ter conhecido apenas anos muito breves de democracia e, finalmente, o fato que a escravidão, na Rússia, só foi abolida em 1861, e que a implementação concreta dessa decisão durou décadas, mantendo dezenas de milhões de camponeses em estado de dependência.

São dados factuais tão macroscópicos que autorizam, para quem quer ver, uma diferença cultural substancial, e pode-se dizer também de estrutura mental, entre um europeu e um russo. Devemos acrescentar que no século XX o país sofreu uma série de traumas devastadores, como a revolução soviética, a guerra civil, o extermínio de pequenos agricultores (os kulaks), as deportações stalinistas, que causaram milhões de vítimas, a tragédia da Segunda Guerra Mundial, com vários milhões de mortos, e finalmente a dissolução da União Soviética, um trauma cultural muito grave, somado ao advento do capitalismo cruel, que nos anos 90 empobreceu diversos segmentos da sociedade e gerou ressentimentos.

Uma tirania constante e um poder sanguinário, que sempre descartou aqueles que pensavam com a própria cabeça, gerou, segundo o autor, um povo acostumado à servidão, para quem a sobrevivência passa pela submissão ao poder. Shishkin lembra que “não houve desestalinização na Rússia e não houve julgamentos de Nuremberg para o Partido Comunista. Agora o destino da Rússia depende da deputinização. Assim como a população alemã “ignorante” viu os campos de concentração em 1945, os russos “ignorantes” devem ver as cidades ucranianas destruídas e os cadáveres de crianças. Nós, russos, devemos reconhecer aberta e corajosamente nossa culpa e pedir perdão”.

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Valente e admirável essa confissão coletiva de culpa do autor; afirmar provas desse tipo de forma tão clara, em seu país, pode ser motivo de prisão. O escritor então continua com considerações pessimistas sobre o destino da Rússia, mas faz uma observação importante: “Nem a OTAN nem os ucranianos podem deputinizar a Rússia. Nós, russos, devemos limpar o país sozinhos”.

O problema é que, dada a possibilidade de se criar uma sociedade civil madura, não é fácil para um eleitor responsável emergir em pouco tempo, assim como não é fácil “substituir de repente milhões de funcionários corruptos, policiais mercenários e juízes complacentes ”. Portanto, será necessário um longo e doloroso renascimento interior.

O escritor então continua com considerações pessimistas sobre o destino da Rússia, mas faz uma observação importante: “Nem a OTAN nem os ucranianos podem deputinizar a Rússia. Nós, russos, devemos limpar o país sozinhos”.

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Shishkin mostra que conhece bem seu país, muito mais do que os apologistas ocidentais que se comovem com a arte primorosa dos grandes escritores russos, esquecendo o estado em que a sucessão de ditaduras deixou a substância moral da nação, exposta todos os dias à vontade e ao puro domínio do poder e do dinheiro, sem qualquer possibilidade de justiça, com o judiciário totalmente escravizado ao poder político. Tal falta de esperança, mesmo na justiça mais elementar, mina e corrompe qualquer sociedade em pouco tempo.

O materialismo descarado e o culto externo ao dinheiro e ao sucesso que inundaram as sociedades pós-soviéticas representam uma forma de irresponsabilidade que está inextricavelmente ligada ao abuso político e judicial direto e à falta de esperança de uma sociedade melhor. Portanto, será difícil encontrar os instrumentos necessários para esse renascimento, em um deserto de ideais tão ensurdecedor, além do mais profundo nacionalismo e militarismo injetado pelo poder nas gerações mais jovens, como uma Hitlerjugend para crianças.

Um caminho difícil e doloroso aguarda a Rússia e, infelizmente, consequentemente, os países que a história colocou ao seu lado. Assim conclui Shishkin: “Um longo e doloroso renascimento é o único caminho para a Rússia. E todas essas sanções, pobreza e marginalização internacional não serão a pior coisa que encontraremos nesse caminho. Será mais terrível quando não houver renascimento interior para o povo russo. Putin é um sintoma, não a doença.”

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*Tradução – Guillermo Piro.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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