Frente à invasão da Ucrânia, o grande dilema atual é se Putin é Hitler. Porque se Putin fosse Hitler, a Rússia não seria Putin como a Alemanha não era Hitler. Quando Hitler foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha conseguiu se tornar um país totalmente democrático, pluralista, pró-europeu, pacifista e um modelo de democracia mundial.
No caso da Rússia, se Putin foi derrotado militarmente como Hitler ou, mais provavelmente, democraticamente, se eventualmente na Ucrânia os acontecimentos não avançaram como Putin achava que deveriam e, progressivamente, as sanções que o Ocidente tomou contra a Rússia produziram efeitos em sua população fazendo-a finalmente perder uma eleição devido a uma economia muito complicada, dada esta situação: A Rússia se comportaria como a Alemanha após a derrota de Hitler, transformando-se em um país democrático, europeu, pluralista?
Se essa hipótese estivesse correta, poderia argumentar-se que a Rússia não é Putin. Eu, pessoalmente, duvido disso e duvido porque durante quase cinco anos fui secretário da Câmara de Comércio Russo-Argentina de uma pequena publicação de moda que a Editorial Perfil tinha na Rússia e naquela época viajava duas vezes por ano.
Eu tive que viajar por toda a Rússia, de São Petersburgo-Moscou em um carro sem estrada cheio de caminhões que iam e vinham carregados de países do Leste Europeu, até cruzar os Urais no trem Transiberian em ambas as direções, da Mongólia a Ikutstk e do Lago Baikal a Vladivostok, o grande porto do Oceano Pacífico russo.
Dividido pelos Montes Urais, dois terços do território da Rússia pertence à Ásia e um terço à Europa, mas concentra 80% de sua população na parte europeia. O que faz os russos se sentirem inteiramente europeus. Uma história reveladora desse sentimento
Aconteceu-me em Vladivostok, banhada pelas águas do Mar do Japão, país que fica mesmo em frente. O outro vizinho de Vladivostok é a Coreia do Norte, cuja fronteira fica a apenas 40 quilômetros ao sul, e a China, que, paradoxalmente, fica a oeste de Vladivostok. Quer dizer, estar na fronteira onde a Ásia começa a terminar, a ponto de o Alasca próximo fazer parte do Império Russo, mas quando perguntei aos habitantes de Vladivostok se eles se sentiam europeus ou asiáticos, eles invariavelmente me diziam que se sentiam europeus. Europeus no Oceano Pacífico, com o Japão a leste, a China a oeste e a Coreia do Norte ao sul.
Mas para os europeus, os russos são asiáticos, surgindo nessa ruptura um conflito antropológico e um choque cultural muito profundo que transcende Putin. Nessa perspectiva, Putin seria uma consequência, não uma causa, desse conflito. A causa irredutível seria aquela ferida na autoestima russa que se sente ocidental e é rejeitada pelo Ocidente. Uma Rússia que se sente europeia, mas a Europa a considera bárbara.
“Mas para os europeus, os russos são asiáticos, surgindo nessa ruptura um conflito antropológico e um choque cultural muito profundo que transcende Putin.”
De fato, sua religião é o cristianismo ortodoxo, definitivamente separado no século XI da Igreja Católica, diferindo em certos ritos, mas não em crenças. A Europa experimentou uma revolução identitária quando Colombo descobriu a América, até então a Europa olhava para o Oriente, para a rota da seda que Marco Polo percorreu no século XIII, quando Veneza e a atual Istambul (Constantinopla, que até o século XV não havia sido conquistada por os otomanos), eram capitais proeminentes porque se comunicavam com o rico Oriente.
Os avanços nas técnicas de navegação, que primeiro permitiram atravessar as costas africanas do Oceano Atlântico e depois a descoberta de outro continente atravessando o mesmo oceano, encheram de riquezas Espanha, Portugal, Inglaterra e França, e fizeram a face da Europa olhar para Oeste ou para o Oceano Atlântico. A sigla da OTAN é explícita: Organização do Tratado do Atlântico Norte, e foi o grande inimigo da Rússia desde os tempos da antiga União Soviética, tendo como resposta o Pacto de Varsóvia do lado comunista.
A Europa vê o mundo “com olhos atlânticos”, expressão usada por um intelectual russo que me acusa de preconceito geopolítico quando dei uma palestra na Academia de Ciências de Moscou em 2002. A Rússia não tem o Atlântico, é um imenso continente mediterrâneo, uma gigantesca Bolívia sem mar a oeste com quase nenhum espaço de costas ocidentais no mar Báltico, perto da Finlândia e no mar Negro coincidentemente ao redor da Ucrânia. Daí a importância da Crimeia, base da Marinha Russa desde a época dos czares, passando pela antiga União Soviética.
A Rússia sente-se europeia, sem o Atlântico. Esse problema é estrutural e geográfico, além de cultural, e não acho que será resolvido simplesmente porque Putin não está mais no comando de seu governo. Seria necessário um enorme esforço de décadas da liderança europeia para incorporar a Rússia na Europa, e a China provavelmente conseguirá adicioná-la à Ásia primeiro, recriando o pacto ideológico anti-EUA pós-Segunda Guerra Mundial.
É claro que a OTAN não era uma organização anticomunista porque a antiga União Soviética desapareceu e com ela o Pacto de Varsóvia. No entanto, a OTAN não para de crescer em direção ao leste, presumindo que seja um tratado “anti” Ásia, cujo objetivo não é apenas conter a Rússia, mas também a China.
Daqueles anos na Rússia durante a primeira presidência de Putin na virada do século, lembro-me de um moscovita não tão conservador me dizendo com orgulho: “Esse é o meu presidente!” quando a televisão russa mostrou Putin falando alemão na frente de jornalistas e autoridades russas (o alemão na Rússia é como o inglês na maior parte do mundo). Que Putin seja temido pelo Ocidente é motivo de orgulho para uma parte significativa da sociedade, que se percebe mais importante do que a imagem que os olhos ocidentais olham.
Esse narcisismo russo ferido sobre o qual já escrevi em colunas anteriores pode diminuir ao longo das gerações, mas transcenderá Putin.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.
*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.