Política e as identidades humanas

Como diz Francis Fukuyama em uma das suas últimas obras, a política é definida cada vez menos por preocupações econômicas ou ideológicas, enquanto crescem as questões de identidade. A política de identidade explica muito do que acontece nos assuntos globais e também nos nacionais. Isso anula uma longa tradição, que remonta a Marx, de ver todos os confrontos políticos como um reflexo de conflitos econômicos. Muitos grupos acreditam que suas identidades nacionais, regionais, religiosas, étnicas, sexuais, de gênero ou de outros tipos não são devidamente reconhecidas

Política e as identidades humanas
Contagem de votos na eleição em 21 de dezembro de 2017 em Barcelona, ​​Espanha (Crédito: Jeff J Mitchell/Getty Images)

Malcolm Gladwell diz que a análise da política é mais complexa do que o pensamento limitado de alguns acadêmicos e governantes que, incapazes de pensar em termos estratégicos, orientam as campanhas tentando usar fatos isolados como peças de marketing político ou de relações públicas. A política é muito mais complexa.

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Tem a ver com atitudes humanas que variam o tempo todo, integradas em conjuntos de percepções psicológicas complexas, que se desenvolvem na interação entre políticos e cidadãos que buscam ser sujeitos do seu destino.

Em muitos casos, confundem-se as ferramentas com a substância. Por um tempo, havia gente que vendia trolls inúteis. Hoje, dizem que é preciso fazer um Tik-Tok, uma ferramenta que não significa nada por si só, mas pode servir para transmitir mensagens eficientes ditadas por uma estratégia ou transformar o candidato em um idiota.

Há governantes que surpreendem com sua campanha quando pensam, quando são capazes de ver os conjuntos, montam uma equipe experiente, à qual fornecem ferramentas para trabalhar com estratégia. O engraçado é que em alguns casos, quando chega o triunfo, o político superficial o atribui à magia, abandona o trabalho racional e costuma afundar.

Mesmo em países onde governos autoritários controlaram tudo por décadas, as pessoas acordam, se conectam às redes, questionam o sistema e pedem liberdade. Esta semana a França pegou fogo com a rejeição ao passaporte de saúde, a África do Sul caiu em uma espiral incomum de violência, a Nicarágua e a Venezuela seguiram rumo ao colapso, no Haiti foi assassinado um personagem que atuava como presidente, que antes havia acabado com o Congresso e as instituições.

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Em Cuba, última sobrevivente da Guerra Fria, cambaleia uma ditadura que durou 60 anos, a qual não pode ser facilmente julgada. Na época, quando parecia que a Revolução se instalava no mundo, ela teve um papel inusitado para um país latino-americano.

“O mundo literalmente quase acabou quando os russos instalaram na ilha mísseis com ogivas nucleares.”

Parecia um jogador de alto nível quando treinou guerrilheiros que se espalharam por toda a América Latina e enviou tropas que lutaram na África. Parecia uma potência mundial.

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No mundo, alguns confiaram na sua força e outros temeram a sua interferência. O mito perdura: alguns vão em procissão para lhe pedir vacinas, enquanto vários governos a acusam dos mesmos problemas que eles também vivem, devido aos seus próprios erros.

As pessoas comuns se cansaram e saíram às ruas cubanas se perguntando: para que serviram tantas décadas de autoritarismo permanecem um dos países mais pobres da América? Valeu a pena tanto sacrifício para viver pior a cada dia? Os outros latino-americanos têm o direito de exigir que sofram indefinidamente a peste e a pobreza em nome de princípios que eles mesmos não vivem?

Os únicos cubanos que gozam de prosperidade são os que fazem parte do terço da população que fugiu para os Estados Unidos, construiu Miami, a cidade latina mais próspera do continente, e sustenta o país com suas remessas.

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“As pessoas acordam, se conectam com as redes, questionam o sistema e pedem liberdade.”

Claro, Cuba não é mais uma das ditaduras romancistas do Caribe que se autodenominam de esquerda. Não há na ilha uma elite ligada ao narcotráfico, afundada em dinheiro, como a venezuelana. Os Castro nunca tiveram uma filha como María Gabriela Chávez, a pessoa mais rica da Venezuela, que tem US$ 4,197 bilhões em Andorra e nos Estados Unidos, que ela diz vir dos seus ganhos como vendedora doméstica de produtos Avon. Nem os líderes cubanos têm todos os filhos à frente das principais empresas estatais, como fazem os Ortega na Nicarágua.

O esquema simplesmente expirou, como os cremes radioativos usados para apagar rugas anos atrás. Passada a prosperidade proporcionada pela sua aliança com a Rússia, é um dos países mais pobres do continente. Seus habitantes têm o direito de se integrarem ao século XXI, de viver melhor, de exercer a democracia.

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No entanto, existem aqueles, mesmo alguns que estudaram alguma coisa, que querem que os cubanos continuem sofrendo em nome de uma Revolução que desapareceu. Seria incompreensível que tivessem tal atitude se não fosse o fato de que, na política, as identidades pesam mais que a razão. Desenvolveremos isso em seguida citando Fukuyama.

As eleições pós-pandêmicas em países democráticos fornecem lições que confirmam tendências que já eram detectadas na academia sobre como a política está funcionando na sociedade da terceira revolução industrial.

Não há fatos isolados que sirvam. É ingênuo acreditar que o governo argentino pode ganhar as eleições se vacinar toda a população. Além da meta ser impossível, este enorme infortúnio não pode ter um final feliz. A pandemia é ruim em si mesma. Não conheço nenhum dono de casa funerária que tenha vencido uma eleição em lugar nenhum, mas vi um palhaço varrer a eleição para deputado paulista em 2010 e o comediante Volodymyr Zelensky ganhar a presidência da Ucrânia.

“Como diz Gladwell, as associações inconscientes podem ser mais determinantes do que os discursos.”

Se Alberto superasse suas superstições e fosse eficiente, ainda assim não teria conseguido manipular os argentinos. As pessoas acreditam que ser vacinado é um direito que não têm obrigação de agradecer. Com a vacinação perfeita, poderia correr a mesma sorte de Netanyahu.

Mas infelizmente não foi assim, estamos entre os países mais mal avaliados do mundo em termos de gestão da pandemia. Amarrar a vida dos argentinos às duas doses da vacina russa foi temerário. Se alguém estudasse história e analisasse o comportamento russo, perceberia que provavelmente não entregariam o que haviam ofertado. Se você conhece a cultura japonesa, ficaria tranquilo ao assinar um acordo com o Japão. Cada cultura tem diferentes atitudes em relação aos compromissos.

O mais insólito foi que alguns funcionários viajaram a Cuba para comprar vacinas, pouco antes de estourar um levante geral porque o governo da ilha não sabe como lidar com a covid. Eles não trouxeram vacinas, mas sim um pedido de doação de seringas dessas que são descartadas na Argentina. Quem conhece o mundo universitário sabe que por trás da Pfizer, AstraZeneca e outros laboratórios estão milhares de cientistas que trabalham, trocam conhecimentos, colaboram. Existe uma comunidade científica internacional da qual Cuba está isolada.

Porém, há quem saia para se manifestar em defesa da Revolução Cubana. Eles não se importam com a morte de pessoas na ilha, desde que sejam respeitados esses princípios exauridos. É um problema de identidades, não de análise racional.

Como diz Francis Fukuyama em uma das suas últimas obras, a política é definida cada vez menos por preocupações econômicas ou ideológicas, enquanto crescem as questões de identidade. Em muitas democracias, a esquerda reivindica menos a igualdade econômica, mas se dedica a promover os interesses de um conjunto heterogêneo de grupos marginalizados, como minorias étnicas, imigrantes, refugiados, mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Por sua vez, a direita redefiniu a sua missão ao se dedicar à proteção da identidade nacional tradicional, muitas vezes atrelada à raça, etnia ou religião.

A política de identidade explica muito do que acontece nos assuntos globais e também nos nacionais. Isso anula uma longa tradição, que remonta a Marx, de ver todos os confrontos políticos como um reflexo de conflitos econômicos. Muitos grupos acreditam que suas identidades nacionais, regionais, religiosas, étnicas, sexuais, de gênero ou de outros tipos não são devidamente reconhecidas.

Há municípios argentinos dominados há décadas por um partido que os levou à miséria, mas que votou e votará no peronismo, por uma questão de identidade.

A política de identidades já não se desenvolve apenas dentro dos guetos das universidades ou nas “guerras culturais” promovidas por alguns meios de comunicação. Tornou-se um conceito que explica muito do que acontece na política. As sociedades democráticas se fragmentam em segmentos que expressam identidades cada vez mais estreitas e fanáticas, o que coloca em risco a discussão da sociedade como um todo.

O sentimento de que seus grupos não são respeitados gera um forte ressentimento e um sentimento que Fukuyama chama de “isotimia”, que faz com que as pessoas exijam que os outros os vejam tão bons quanto eles.

Com o surgimento da democracia moderna, a isotimia tende a prevalecer sobre a megalotimia: sociedades que apenas reconheciam os direitos de algumas elites, são substituídas por outras, que reconhecem a igualdade de todos os grupos. Os cidadãos que temem perder o seu status de classe média se irritam com as elites, porque sentem que elas não os veem e concedem privilégios aos pobres, que eles consideram injustamente favorecidos.

O trabalho confere dignidade à pessoa, mas a classe média argentina se irrita quando sente que o governo favorece quem não segue as regras. A garantia dos abusos cometidos por certas organizações laborais ou por alguns indivíduos que ocupam o trem porque querem ser contratados, afetando centenas de milhares de cidadãos, são bombas-relógio que vão explodir em algum momento.

Os indivíduos muitas vezes percebem os problemas econômicos mais como uma perda de identidade do que uma perda de recursos. Ter que descer para a segunda marca não condena o consumidor à fome, mas implica uma perda de reconhecimento.

Não se deve analisar tudo com base em superstições e ideologias. Nem pensar que só existem as próximas eleições. O estadista deve olhar para o horizonte; o politiqueiro apenas poderá tentar tirar a cadeira debaixo de quem está ao seu lado para conseguir alguns votos.

*Por Jaime Duran Barba – Professor da GWU. Membro do Club Político Argentino.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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